terça-feira, julho 05, 2005

Da clarividência acidental (ou post sobre tanta coisa que parece ser sobre (o) nada)

Arrumei as coisas mesmo antes de saber que ia.
Acaso tivesse sido interrogada sobre a conveniência de ir ou ficar, ela decidir-se-ia sempre pelo riscar do anterior, pela conveniência do ir.
Pelo inimputável começar de novo. Há gente que não sabe ter passado. Os políticos têm sempre passado, um passado construído, claro está. Aqui, todos foram combatentes antifascistas. Para Kundera, isso é o kitsch. Aquela palavra alemã que aqui, e para Kundera, não está aplicada naquele sentido mais comum.
Ela não era kitsch porque tinha má memória.
E também não era vítima de um passado construído. Nunca combateu o fascismo.
(Já nem sabia bem o que era isso, disseram-lhe que Salazar não era fascista, que o fascismo nunca existiu em Portugal. Pensou em todos os políticos que ficavam sem o seu kitsch e o seu passado construído porque tinham andado a combater o nada.)
A memória é um acessório limitado às três horas anteriores, ao que se lê nos livros, e aos melhores orgasmos.
Ele disse que ela era egoísta, que nunca se lembrava dele. Só que o que ele não sabia (ou preferia não saber) é que ela tinha má memória, ou melhor, memória selectiva pincelada por ocasionais surtos de clarividência acidental que, mal interpretados, poderiam ser tomados como perigosas premonições.
Estava a salvo dos espíritos mais incautos e precipitados porque não se chamava Cassandra.
Lembrou-se de arrumar as coisas antes mesmo de saber que ia, mas raramente se lembrava de ligar.