"Os Energúmenos" Revisited II
Nos sistemas jurídicos inspirados pelo modelo anglo-saxónico, vigora a chamada “regra do precedente”. Estes sistemas têm uma forte influência jurisprudencial, já que as decisões dos Tribunais são consideradas “fonte de direito” e aplicadas a processos pendentes, isto apesar dos valores ético-jurídicos subjacentes à sentença poderem estar ultrapassados ou totalmente desfasados da realidade. É precisamente o tal “precedente” que pode fazer ganhar ou perder um processo, mesmo que em prejuízo da verdade material, e que acaba por justificar, por exemplo, algumas decisões dos Tribunais norte-americanos que são, por nós, consideradas totalmente absurdas.Embora não tenha conhecimentos jurídicos suficientes para teorizar sobre as vantagens e desvantagens deste tipo de sistemas jurídicos, permito-me chamar a atenção para o seguinte:A Estrada Viva – Liga Contra o Trauma, quer responsabilizar civil e criminalmente os ministros e técnicos envolvidos na aprovação e posterior execução de algumas estradas portuguesas, nomeadamente os IP’S, pelas centenas de mortes lamentavelmente ocorridas nessas estradas. Embora tenda a concordar com a perigosidade de alguns troços, só me ocorre uma palavra: “extraordinário”. É, de facto, extraordinário responsabilizar técnicos e governantes pelas atrocidades e actos altamente pornográficos que vemos nas nossas estradas. Um condutor que circula alcoolizado a 180 km/h no IP5; que circula em contra-mão durante 10 km por “mero lapso”; que puxa dos seus cavalos e faz da Ponte Vasco da Gama o “Grand National” e que depois embate noutros veículos acabando por provocar lesões irreparáveis ou mesmo mortes, não tem culpa, porque afinal o traçado foi mal executado, a inclinação da descida do Km 25 era tecnicamente deficiente, e por aí em diante... Por outro lado, também a Tabaqueira está prestes a ser processada. Parece que os doentes com cancro do pulmão responsabilizam a produtora de cigarros pelas consequências nefastas de dezenas de anos de vício. Face a estas notícias, sou obrigado a recuar ao 4.º ano do curso de Direito, e trazer à colação um conceito jurídico-penal denominado actio libera in causa, ou “acção livre na causa”. Muito sinteticamente, esta figura permite condenar o agente que, consciente e voluntariamente, coloca-se numa situação de perigosidade, acabando por provocar danos devido à sua conduta anterior. Exemplo de escola, o médico que, sabendo que tem de operar no dia seguinte, bebe umas cervejas a mais na véspera, acabando a operação por correr mal. Saber se o conceito, bem como as suas consequências legais, é aplicável aos casos sub judice cabe a cada um, mas não deixa de ser interessante e sugestivo. Doutrina à parte, se isso vier a acontecer, vou estar atento ao desenrolar dos processos. Se, face à prova produzida, os juízes responsáveis pelos respectivos processos, vierem a dar provimento às pretensões dos autores, a justiça portuguesa vai mudar radicalmente. Agora imagine-se que o sistema jurídico português era influenciado pelos sistemas anglo-saxónicos. Era o descalabro total. Com base nas sentenças supra referidas, lá aparecia a Associação dos Doentes de Cirrose a accionar judicialmente a Casa Ferreira devido ao alto teor de álcool que o vinho do porto contém; a Associação dos Doentes de Pneumonia a litigar contra as “Confecções Do Homem” por considerar que os seus sobretudos não são suficientemente compridos para proteger os utilizadores do frio e da chuva; a Associação de Pais da Escola C+S do Carregado a processar a Sony pelo insucesso escolar dos seus filhos, mais interessados no “Pro Evolution Soccer 4” do que no manual de métodos quantitativos. Bendita “orientação germânica”...
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