Post de Merda II
Comecei a ler o novo livro do Umberto Eco, não aquele que elogia a beleza e que dele "só" tem a coordenação. Este é mesmo do mais célebre Professor de Semiótica.
Chama-se "A misteriosa chama da Rainha Loana" e conta a história de um Senhor que acorda de um AVC que lhe fez perder a memória. Não a memória "semântica" mas a memória "autobiográfica". Yambo (é o nome do dito cujo) lembra-se de tudo sobre Júlio César, Proust, TS Elliot, Picasso e ainda sabe de cor poemas e citações que leu ao longo da vida, no entanto já não se lembra da mulher e filhas nem tão-pouco da sua infância.
Este livro é a história de uma pessoa à procura de si próprio, e que avança pelo nevoeiro guiado apenas por antigos álbuns de quadradinhos, cadernos escolares, discos e tudo mais que encontra no velho sótão da sua casa de campo.
Posto isto, estava eu embrenhado na leitura deste romance quando dei por mim a lembrar-me do meu querido amigo GMM, se não vejamos...
"Acocorei-me, no grande silêncio meridiano, só interrompido por algumas vozes de pássaros e pelo cantar das cigarras, e defequei.
Silly season. He read on, seated calm above his own rising smell. Os seres humanos amam o perfume dos seus excrementos mas não o cheiro dos alheios. No fundo, são parte do nosso corpo.
Estava a sentir uma satisfação antiga. O movimento calmo do esfíncter, por entre toda aquela verdura, evocava-me confusas experiências anteriores. Ou é um instinto da espécie. Eu tenho tão pouco de individual, e tanto de específico (tenho uma memória de humanidade, não de pessoa) que talvez estivesse simplesmente gozando um prazer já provado pelo homem Neandertal. (...)
Quando acabei, tive a ideia de me limpar com umas folhas, devia tratar-se de um automatismo. Mas tinha comigo o jornal e rasguei as páginas dos programas televisivos (...).
Levantei-me e olhei para as minhas fezes. Uma bonita arquitectura em caracol, ainda a fumegar. Borromini. Devia ter o instestino em ordem, pois é sabido que só nos devemos preocupar se as fezes são demasiado moles ou até líquidas.
Via pela primeira vez o meu cocó (na cidade sentamo-nos na sanita e, depois, puxamos logo o autocolismo sem olhar). Já estava a chamar-lhe cocó, como acho que fazem os outros. O cocó é a coisa mais pessoal e reservada que temos. O resto toda a gente pode conhecer, a expressão do rosto, o olhar, os gestos. Também o nosso corpo nu, na praia, no consultório médico, enquanto fazemos amor. Até os pensamentos, porque habitualmente os exprimimos, ou porque os outros os adivinham pela nossa maneira de olhar ou pelo nosso embaraço. Claro que também há-de haver pensamentos secretos (...), mas em geral os pensamentos também se manifestam.
Pelo contrário, o cocó não. A não ser por um período muito curto da nossa vida, quando quem nos muda as fraldas é a mãe, depois é só nosso. E como o cocó daquele momento não devia ser muito diferente daquele que produzira no decorrer da minha vida passada, eis que naquele instante me estava a reencontrar com o eu mesmo dos tempos esquecidos e estava a ter a primeira experiência capaz de se juntar a inúmeras outras anteriores, incluindo aquelas de quando era criança e fazia as minhas necessidades nas vinhas.
Se olhasse bem em volta, talvez ainda encontrasse os restos do cocó que fizera na altura e, com as triangulações certas, o tesouro de Clarabela.
(...)
Ainda assim, não me sentia deserdado, mas contente, digo mesmo contente, de uma forma nunca experimentada após ter acordado. Os caminhos do Senhor são infinitos, disse para comigo, passam também pelo olho do cu."
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