quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Oscarizáveis e Voos Rasos

Hollywood adora próteses, patologias, deficiências várias, maníaco-depressivos, “passive-agressives”, paranóias, doenças, maluquinhos em geral e sofredores em particular.

Oscarizável que se preze emagrece ou engorda vinte quilos, ou é psicopata, ou usa próteses ou passa por cinco horas de maquilhagem antes de gravar cada cena.

Holly Hunter muda e virtuosa no Piano, Hanks com problemas mentais em Forrest Gump, seropositivo e vitima de discriminação sexual em Philadelphia, Charlize desfigurada, Nicole com laivos de Cyrano de Bergerac, Dustin Hofman vestido de mulher, Hopkins serial killer, Daniel Day Lewis paralisado e prodígio, Jamie Foxx cego em Ray...

Interpretações brilhantes, mas Sissy Spacek não levou o Óscar para casa por Vidas Privadas, apesar da extraordinária interpretação, porque era das contidas. Afinal, não tinha nenhuma prótese, não matou vinte pessoas, só tinha perdido um filho (Berry também, mas não é das contidas, o overacting é claro. Aqui, entenda-se, sem depreciação alguma).

E agora Dicaprio/Hughes que lava as mãos cem vezes por dia (como Hans Christian Andersen), urina para dentro de garrafas e é, no geral, descompensado.

Há realizadores que me causam problemas de digestão. Digestão metafórica entenda-se. Martin Scorcese é um deles. À excepção de “A Idade da Inocência” que me apaixonou ao primeiro visionamento e me continuou a encantar em todos os que se seguiram, os filmes mais recentes de Scorcese são sempre de difícil digestão. Especialmente os oscarizáveis.

Foi assim com Gangs de Nova Iorque, foi assim com o Aviador.

A sensação é sempre a mesma: Daniel Day Lewis excepcional, Leonardo di Caprio excepcional.

Mas a ponta solta permanece, há qualquer coisa que falta no argumento, alguma solidez, alguma consistência.

Mesmo coadjuvado por secundários notáveis como Cate Blanchet personificando a outra Kate, há alguma coisa que escapa a Di Caprio e teima em fugir a Scorcese até ao fim do filme.
Tal como em Gangs de Nova Iorque e a Idade da Inocência há atenção aos pormenores: a reconstrução da época dourada de Hollywood com todos os seus monstros sagrados (Ava, Errol, Kate e o próprio Hughes), o cuidado guarda-roupa (o de Cate/Hepburn é especialmente bem conseguido), e o ar efeminado da ridícula banda do bar da gente de Hollywood são créditos.

Mas o filme é excessivamente longo, quase se arrasta até ao momento do aparatoso acidente, e o fim, abrupto.

As paixões de Hughes, os aviões e as mulheres, as patologias com a limpeza aparecem superficialmente retratadas, e o trabalho de construção do personagem (muito ao jeito dos normalmente galardoados com a estatueta dourada) de Di Caprio, convertido em novo “favorite brat” de Scorcese, não permite a criação de empatias com a personagem.

Pelo contrário, Di Caprio é irritante. Mas é oscarizável.

Ao contrário do que acontecia com Hofman em Tootsie, em que a construção de um personagem muitissímo ajudado pela caracterização, mas com uma personalidade muito vincada, conjugada com o Hofman desmaquilhado personificando o actor frustrado e irascível (inspirado no próprio Hofman, muito conhecido pela temperamento irascível e perfeccionismo maníaco), mas que criava empatias com o público, Scorcese não consegue que se goste de Hughes. Não consegue que se torça por ele.

O voo do aviador, destinado à estratosfera, é raso.
Ainda assim, teremos finalmente o óscar para Scorcese?